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Há males que vêm para o bem (ou Era uma vez na Itália…)

Há males que vêm para o bem (ou Era uma vez na Itália…)

A gata borralheira

É… Parece que contos de fadas existem mesmo. — E eu sou a gata borralheira —, pensava enquanto limpava a lareira repleta de cinzas, sob a supervisão de uma senhorinha que, à primeira vista, parecia simpática e inofensiva como a bruxa dos doces de João e Maria. Mas que agora lançava para mim um olhar de superioridade igual ao da madrasta da Cinderela, enquanto fiscalizava meu serviço de… VOLUNTÁRIA.

É sério isso? — eu grunhia. Meus nervos flutuavam entre raiva e piedade. Ao mesmo tempo que tremia enquanto me imaginava dando uma vassourada na cabeça da megera; preenchia-me uma onda de compreensão e compaixão. — Ah, tadinha. Ela não faz por mal. — Eu tentava me convencer. — Apenas deve ter passado por momentos difíceis. Ou sou eu que não estou sabendo me comunicar como deveria.

Mas então a raiva voltava e eu gritava em meus ouvidos: — Sabe o nome disso, Rachel? Exploração. ASSÉDIO MORAL!

Eu e Luiz Felipe estávamos em mais um Workaway. Mas realizávamos as tarefas separadamente. Ao que parecia, homens não podiam trabalhar dentro de casa. E mulheres não poderiam lidar com os trabalhos mais pesados da fazenda. Restava-me, portanto, desfrutar da companhia da velha senhora ao longo de boa parte do dia. Que sorte a minha! #sqn

Como fomos parar ali?

Ao deitar na cama, eu refazia todo o caminho até ali. E orava: — Deus meu, onde é que nós fomos nos meter? Como é que vamos sair desta confusão?

Tudo começou em dezembro de 2019. Estávamos vivendo dias deliciosos na Quinta da Portela quando recebemos o convite para ajudar um casal ítalo-americano com sua casa, próxima a bela cidade de Assis, na região central da Itália. Imediatamente eu senti um comichão nos pés impulsionando-me a aceitar o convite. Não conhecia Assis e… — Ah… Que saudade da Itália! — Eu suspirava.

Encontramos passagens aéreas baratíssimas para Bolonha, outra cidade que não conhecíamos e, por fim, aceitamos o convite. Pela primeira vez íamos a um local de Workaway que não tínhamos escolhido com todo o esmero de sempre. Pela descrição do anúncio, eu até tinha meus receios. Mas fomos com a cara e a coragem, no melhor estilo “Deixa a vida nos levar”, confiando que o destino estaria ao nosso favor.

—Ah… Mais quanta ingenuidade, Rachel! — eu me criticava. — Você deveria ter planejado, como sempre. Nunca faça isso!

O menino do estábulo

Por sorte, o menino do estábulo também não ia muito bem. Enquanto eu varria, lavava, limpava lareiras e geladeiras, Luiz Felipe cuidava de cabras e burros pela primeira vez na vida. Porém, sem entender muito bem as instruções em italiano que lhe eram passadas.

Se o destino tem algo a ver com isso, ele quis que, pela primeira vez também, Luiz Felipe mandasse muito mal no trabalho. O que acabou por gerar muitas discussões com “nossos patrões” em inglês e italiano.

Mas, como um príncipe que um dia pensou em ser plebeu, mas que caiu em si e concluiu que a plebe não deveria ser tratada da maneira como ele estava sendo tratado, Luiz Felipe resolveu tomar as rédeas da situação.

Falou em português, por fim. E foi compreendido. Não ficaríamos nem mais um dia ali. Fizemos as malas e fomos embora.

—Uau, meu amor! Não acredito que estamos fazendo isso! Workaway sempre deu tão certo para nós. Fomos de grande ajuda nos outros momentos. Reunimos tantas histórias boas. — Que pesadelo foi esse? — Eu dizia com brilho nos olhos. Com aquele brilho de quem já sentia o cheiro de liberdade e que tinha acabado de ser salva pelo menino do estábulo, convertido em príncipe encantado.

O disfarce da bondade

Hoje, olhando para trás, vemos que o maior problema daquele lugar era a bondade disfarçada. Aquele casal precisava de nossa ajuda porque não dava conta da casa que haviam construído e dos afazeres que tinham arrumado para si. Mas armavam toda a situação como se nós é que precisássemos deles. Como se eles estivessem nos fazendo um grande favor.

Eles consideravam-se pessoas muito bondosas, mas de forma alguma nos tratavam de igual para igual. Diferente dos outros locais em que trabalhamos, não se tratava de uma troca cultural. Comíamos uma massa bem mais ou menos todos os dias, ou as sobras das comidas deles. Trabalhávamos no horário que eles queriam. Não éramos dignos de conhecer os amigos deles. Éramos serviçais. Não pagos. E sentimos na pele a forma como muitos brasileiros tratam suas empregadas domésticas. Não foi legal, não.

Há outros detalhes sórdidos que surgiram no meio do caminho. E demorou vários dias para que eu me recuperasse de uma forma que conseguisse falar sobre isso com o coração leve. Mas este é um blog para falar do bem. Então…

Há males que vêm para o bem

Saímos daquele lugar com a ajuda de um táxi que nos custou os olhos da cara! Mas eu juro que me sentia cavalgando em um cavalo branco, agarrada ao meu príncipe. E, quando a noite chegou e fomos a um restaurante para comemorar a libertação, sentia-me em um verdadeiro banquete. Feliz! Tão feliz eu estava que não cabia em mim!

Planejamento? Não tínhamos nenhum. Agora teríamos que traçar uma nova rota, um plano B. E o destino escolhido foi a Perúgia, seguida da Bella Roma. Afinal, “todos os caminhos levam a Roma”, não é assim?

A essa altura, início de fevereiro de 2020, o Corona Vírus já tinha chegado à Itália. Mas a vida seguia seu rumo normal. Ninguém sequer imaginava o que estava para acontecer nas próximas semanas. E nós fomos extremamente abençoados.

Antes do mundo parar, tivemos a oportunidade de fazer aquilo que mais gostamos de fazer: viajar, conhecer novos lugares, novas cidades, novas comidas. Dedicamos-nos integralmente aos nossos projetos pessoais, hospedamo-nos em um apartamento que tinha a nossa cara, em um gostoso bairro residencial de Roma, e apaixonamo-nos pela cidade novamente.

Visitamos a Via Appia, o Trastevere, a Fontana di Trevi e o Vaticani. Comemos Focaccia, Carbonaras e Matriccianas. Parlamos Grazie e Prego. Sorrimos.

Comemoramos 6 anos juntos como marido e mulher. Mas, acima de tudo, ficamos ainda mais fortes, ainda mais companheiros, ainda mais parceiros, ainda mais cúmplices de um crime perfeito.

Fomos muito felizes naqueles dias.

-> Para acompanhar nossas viagens em tempo real, siga o Luiz Felipe Sandins no Instagram.

O retorno

Depois de tudo isso, chegamos em Portugal mais pobres de dinheiro, mais ricos de espírito, e à véspera do caos. Nos dias que se seguiram o mundo mudou drasticamente. Foi necessário mudar nosso estilo de vida. Ter paciência, esperar.

As lembranças dos dias na Itália, entretanto, reverberaram durante toda a quarentena e reverberam até hoje. Como foi bom ter vivido intensamente, sem arrependimentos! Como foi bom curtir aquele momento. Foi um presente.

Por fim, somos muito gratos pelos perrengues que passamos. Se não fosse por eles, não teríamos vivido aqueles dias de glória, que definiram parte de quem somos hoje, e que carregaremos para sempre com muito carinho, para toda a vida.

Há males que vêm para o bem, sim. Você já viveu alguma situação assim? Já se viu em meio a um grande perrengue que acabou por se transformar em uma benção? Conte para a gente nos comentários!

E… #olhabempqbemtem

Rachel Jaccoud Amaro

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Rachel Jaccoud Amaro

Rachel é historiadora por formação, escritora por vocação e fotógrafa nas horas vagas. Ama quebrar paradigmas e, exatamente por isso, abraçou o Olha Bem pq Bem Tem como projeto de vida.

4 thoughts on “Há males que vêm para o bem (ou Era uma vez na Itália…)

  • Luana Ribeiro

    Gente, socorro! Dá asco de imaginar que ainda existem pessoas assim, que exploram as outras como seus escravos. Imagino o sufoco que passaram. Mas que bom que conseguiram se livrar deles e ressignificar a experiência vivida. Fico feliz que os momentos de glória posterior ao momento de caos tenha sido recompensador. A vida é isso.

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    • Oi, Luana! Sim. Foi mesmo um sufoco. Mas no final tudo compensou. Fica a aprendizagem de que realmente existem pessoas assim e que todo o cuidado é pouco. Mas estamos atentos. hehehe Muito obrigada por seu comentário! <3

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