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Nossa vida alemã

Ela era pequenina, com um rostinho bastante atrevido e barriguinha branca. Chegara para averiguar a área, caminhava e sobrevoava o terraço como se estivesse marcando território e divertia diariamente nossos cafés da manhã com sua presença.

Um dia, apareceu seu par. Vimos o exato momento em que ela foi conquistada por uma antiga técnica de acasalamento: o macho se aproximava e abria suas asas como se estivesse prestes a abraçar nossa pequena mascote. Logo vieram os filhotes e a vida da passarinha que escolheu nossa varanda para morar, mudou completamente. Ela e seu companheiro passavam o dia a procura de pequenos galhos para a construção de seu ninho e de insetos para alimentarem seus novos rebentos. Perdemos as contas de quantas vezes ela parou em nossa janela e nos olhou com uma mariposa pendurada no bico. Em dias frios e de chuva, como que para facilitar o trabalho da família, colocávamos farelo de nossa melhor Focaccia para alimentá-los.

Assim eram os dias em Bacharach, a pacata e bela cidade medieval em que vivíamos na Alemanha. Parecia mesmo com um conto de fadas: tinha passarinhos que vinham cantar em nossa janela, tinha bambis que pastavam nas montanhas, corvos que sobrevoavam os vinhedos. Tinha bruxa, fada madrinha e príncipe encantado. Mas não necessariamente nesta ordem.

Os dias eram longos. Acordávamos cedo para o trabalho na lavoura. Após um abraço e um café quentinhos, enfrentávamos frio ou calor, ordem e desordem. Dormíamos cedo também, sentindo as dores no corpo do dia árduo, mas sempre agarradinhos, com a gratidão de termos um ao outro.

Éramos companheiros. Trabalhávamos juntos, orávamos juntos, comíamos juntos, sonhávamos juntos. Sem mães por perto, sem ifood, sem restaurantes, sem mercados, desenvolvemos nossos dotes culinários. Não havia outra forma de comer aquilo que desejávamos a não ser cozinhar. E foi assim. Surpreendi-me com o resultado, com os sabores e, principalmente, com o prazer que aquela prática me trouxe.

Éramos parceiros. Queríamos tornar nossa vida melhor, transformar as vinhas, criar um lar acolhedor. Recebemos visitas queridas e enchemos o ambiente de gargalhadas e de palavras sinceras. Trouxemos plantas e mimos. Cultivamos o olhar gentil da vizinhança e fizemos amigos que cuidavam de nós. Queríamos muito fazer a diferença.

Éramos cúmplices. Dividíamos garrafas de vinho, sorrisos, preocupações e frustrações. Confiando em Deus, íamos percebendo que os dias ali poderiam acabar de uma forma não muito agradável. Mas mesmo assim dávamos o melhor de nós e sabíamos que os dias ali faziam parte de nossa jornada, ainda que não significasse: “E viveram felizes para sempre”.

Até que a bruxa chegou, e com ela a sua maldade, suas mentiras e artimanhas. A vida complicou trazendo-nos perdas inestimáveis. O que fazer para impedir que a tristeza e o medo nos paralizassem?

Então um gavião estava à espreita. Como uma mãe que olha aflita para o filho que aprende a voar, temíamos pela vida da família de passarinhos que nos havia acompanhado por tantos meses. Um dia, eles simplesmente desapareceram sem dar qualquer notícia, sem deixar bilhete, com exceção da fêmea, que ainda voltou a desfilar pela sacada como quem diz tchau: chegara a hora de partir.

Trilha sonora deste post: Bevor du gehst – Xavier Naidoo

Rachel Jaccoud Amaro

Rachel é historiadora por formação, escritora por vocação e fotógrafa nas horas vagas. Ama quebrar paradigmas e, exatamente por isso, abraçou o Olha Bem pq Bem Tem como projeto de vida.

5 thoughts on “Nossa vida alemã

  • DIRCEU AMARO JUNIOR

    Lindooooo. Desde o texto, como sempre, que chega a trazer o cheiro da manhã e do café fresquinho…passando pela poesia cheia de sensibilidade, até a trilha sonora, que mostra a efemeridade dos momentos e a necessidade de partidas na caminhada…obrigado pelo carinho na alma e no coração ❤

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  • Toda manhã, ao despertarmos, iniciamos um novo capítulo da nossa história, um novo “era uma vez”. E à noite, ao deitarmos, refletimos sobre o dia, sobre o que poderíamos ou não ter feito, nos alegramos, nos cobramos, ansiamos por um evento futuro, adormecemos ou temos insônia… escolhemos ou não finalizar essa parte do nosso enredo com “felizes para sempre”. Talvez ainda, não seja “para sempre”, e sim, somente, “feliz para”. Feliz para continuar sonhando; feliz para aprender coisas novas; feliz para viajar para um lugar desconhecido; feliz para trabalhar no que gosta…

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  • Jeitinho muito seu ( Raquel ) de olhar-se e olhar a vida junto com o seu “ gavião “ Filipe . A vida sempre nos devolve o nosso melhor Vai e agarra. ❤️
    Tudo está ao nosso alcance mesmo quando não chega no momento que esperamos.

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