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Que caiam os clichês!

#olhabempqbemtem …acabar com velhos clichês e se deixar surpreender pelas pessoas a sua frente.

Era uma noite fria de outono. Um sábado, em uma pacata cidade. Três amigos saíram do lugar onde estavam hospedados e caminharam até o centro, em busca de um ambiente agradável e quente, algumas taças de vinho e uma comida que lhes agradassem os sentidos. Entraram em um estabelecimento que já tinham visitado antes e que haviam gostado muito… Quanta gente!

Esperaram alguns poucos minutos por uma mesa e sentaram-se em torno da mesma em que haviam estado da última vez. O ambiente era muito bonito. Uma casa muito antiga, paredes e móveis de madeira, típicos daquela região. No ambiente em que estavam, outras três maiores mesas.

Quanto barulho!

Esperaram vários minutos para serem atendidos. “A casa está muito cheia!” – disse-lhes a senhora que trouxe o cardápio. Passaram-se outros tantos minutos para que ela voltasse e anotasse os pedidos. E muitos outros para que a comida chegasse e suprisse os estômagos já famintos. Os amigos cogitaram ir embora. Mas por que o fariam? Aquele era um estabelecimento familiar, dirigido por uma boa família que só estava um pouco enrolada com a vasta e alegre clientela.

Sob efeito de muitas taças de vinho, os decibéis do som ambiente aumentavam a níveis quase insuportáveis a ouvidos mais sensíveis. Nas mesas ao lado, muitas gargalhadas e conversas que qualquer um poderia ouvir. Assim, uma mesa começou a prestar atenção na conversa da outra. Em poucos minutos, todos se conheciam e uma única grande mesa se formava.

Sim… Nós éramos dois dos três amigos que saíram naquela noite. Mas, não… Não estávamos no “jovem e animado Brasil”.

Estávamos na “velha, tradicional e séria” Alemanha.  

Além de nós, na pequena mesa dos três amigos estava Martin, nosso mais novo amigo alemão. Ao som de minhas reclamações em relação ao barulho das mesas ao lado, ele observava a cena toda com um enorme brilho nos olhos. Admirado com a alegria ao redor, orgulhoso de sua cultura, repetia sem parar em seu escasso inglês: “This is beautiful. Only one table. If you want to… We can join them.” (Isso é lindo. Uma única mesa. Se vocês quiserem, podemos nos unir a eles).

Eu não queria. Para uma pessoa que já nasceu velha e antissocial como eu, seria um enorme sacrifício conversar com aquelas pessoas… Ou era assim que eu pensava…

Minutos se passaram e os efeitos do vinho também tomaram conta de mim. Avistei a frente da nossa mesa uma bela roca… Igualzinha aquela do filme “A Bela Adormecida”! Com a mente mais alegre, que já ignorava o barulho ao redor, levantei da mesa para tirar uma foto do antigo objeto e enviar para as minhas irmãs, que assistiram ao filme comigo uma centena de vezes. (“A Bela Adormecida” foi o primeiro VHS da Disney que ganhamos de nosso pai, em uma quente noite de Natal no Rio de Janeiro. Por isso o valor emocional).

Não foi a primeira vez que Martin se espantou com aquilo que fotografávamos. É que o óbvio para ele é muito diferente daquilo que é óbvio para seus amigos brasileiros… Ele, então, perguntou-me o porquê da foto. Ao que eu respondi alegremente: “It’s just like the movie… The Sleeping Beauty!” E pela milésima vez naquela noite, ele enrugou a testa com cara de quem não tinha entendido nem uma sílaba do que eu estava dizendo.

Então me rendi a sociabilidade…

A essa altura, claro que as mesas ao redor já estavam interessadas em saber o que se passava ali. Minutos antes, Martin já havia contado a todos que éramos brasileiros, numa tentativa de se unir a conversa das outras mesas, deixando bem claro que estava entendendo tudo o que todos falavam…

Então, sem encontrar a palavra em alemão para o filme, acabei contando para todos o que eu estava fazendo e perguntei qual era o nome do filme em alemão. “Martin, não acredito que com três filhas você não saiba que filme seja esse!?” – eu seguia dizendo, com todos rindo a minha volta.

E foi assim que minhas irmãs não chegaram a receber a foto da roca; e que eu e meu marido acabamos dividindo a mesa com os alemães. Eles perguntaram: e que tal a Alemanha? Que tal Bacharach? O que fazem aqui?”. O vinho já tinha mandado minha timidez para longe dali e comecei a fazer um relato mais ou menos detalhado de meu vínculo com a Alemanha… (Em outras palavras, desembestei a falar!)

Tenho uma prima que mora aqui. Sou historiadora. Queria estudar Segunda Guerra Mundial e acabei estudando Albrecht Dürer. Estudei alemão. Já vim a Alemanha várias vezes… E… Estou impressionada com o que aconteceu aqui esta noite. Estou impressionada com o barulho, com a união das mesas… Normalmente os locais públicos na Alemanha são silenciosos. Todos falam baixo e, eu com meu sangue latino, preciso sempre controlar o tom de minha voz.

Ah…. Os clichês… – um deles disse.

Exatamente! Os clichês… Aquelas ideias que se repetem com tanta frequência que se tornam “lugar-comum”. Verdadeiras inverdades. E a conversa continuou em torno de tudo aquilo que frequentemente é dito sobre brasileiros e alemães… E que não se aplicava a quase ninguém que estava ali naquela sala!

Passaram-se quase dois meses deste ocorrido. E desde aquela noite, eu penso em escrever este post.

Ao longo deste período, diverti-me reunindo mentalmente uma coleção de clichês banais e destruindo-os um a um.

A começar por mim mesma. Brasileira, nascida no Estado do Rio de Janeiro. Exemplo claro da inaplicabilidade de clichês. Estou longe de ser a típica brasileira, menos ainda a típica carioca. Não sei dançar, não sei rebolar. Não gosto de funk, pagode, samba, sertanejo. Não gosto de futebol. Não ligo para praia. Prefiro o frio, a montanha. Tenho enorme apreço pela pontualidade e pela sinceridade, doe a quem doer.

Não sou nada daquilo que normalmente se diz sobre os brasileiros. E sempre jogo esse balde de água fria em estrangeiros, quando eles mencionam a minha nacionalidade. Quando não o faço, são eles mesmos que comentam: “realmente, vocês são completamente diferentes da ideia que eu tinha dos brasileiros”.

Ah… Isso é música para os meus ouvidos! Adoro ser aquela que “quebra paradigmas”, como já dizia um amigo meu.

Mas não tenho nada contra o Brasil e os brasileiros. Não é essa a questão. O que acontece é que, por diversos fatores (e somos culpados de alguns deles, mas não de todos), a ideia que foi construída em torno de nós, nada tem a ver com quem nós realmente somos. E fazer com que as pessoas desconstruam a imagem do brasileiro exótico, que só pensa em Carnaval e futebol, é muito bom!

Isso, entretanto, não significa que eu não aplique clichês aos outros.

É muito difícil não dar ouvidos aos clichês quando estamos sentados em nossos sofás, assistindo televisão e curtindo o Facebook; ou convivendo e conversando sempre com as mesmas pessoas. As ideias que circulam são tão repetitivas que você acaba acreditando piamente naquilo que você, na verdade, não vê nem nunca viu. Você acredita que os alemães são todos loiros, altos, muito sérios e sem qualquer senso de humor. Você acredita que os países de origem anglo-saxão não sabem gingar como os países de língua latina ou como os africanos. Você acredita que australianos só querem saber de praia, assim como os brasileiros. Ah… Os clichês…

Você acaba acreditando que as pessoas são mais iguais que diferentes entre si; se foram de um mesmo país. E mais diferentes que iguais entre si; se forem de países diferentes. Ah… Ledo engano. Somos todos humanos, diferentes e iguais entre si, muito além da nacionalidade de cada um.

E sair do sofá para o mundo e assistir os clichês caírem bem diante dos seus olhos é uma experiência maravilhosa…

Espero guardar bem em minha memória aquela noite barulhenta em Bacharach…

Espero perpetuar nossa amizade com o Martin: um alemão autêntico, que ama seu país, seu povo e sua cultura… Que não vive sem sua cerveja, que adora comer e também cozinhar, especialmente para aqueles que ama. Que é leal aos seus amigos. Que faz de tudo para agradar aos que estão ao seu redor. Que adora uma piada, uma comédia… E que guarda em si uma boa dose de loucura. Está longe de ser o mais civilizado dos alemães… Irreverente como na foto em destaque deste post.

Espero jamais esquecer a linda cena da holandesa “Janine”, da Quinta da Portela, levantando da mesa e dançando ao som de uma música regional portuguesa… Um som muito próximo do nosso sertanejo… Com alegria e um gingado e um balanço invejado por essa brasileira aqui que vos escreve e que não sabe dançar.

Espero lembrar sempre com muito carinho dos australianos Janis e Monica, que se surpreenderam com nosso alto nível de interesse por todas os assuntos desse mundo, tanto quanto nos surpreenderam com o igual nível de interesse deles… Que são dotados de grande humanidade e gentileza…

Que caiam os clichês! Que antes de julgarmos as pessoas, sejam elas quem forem, possamos lhes dar a chance de se apresentarem a nós, como elas gostariam de serem vistas. Se assim fizermos, nos surpreenderemos e descobriremos que pessoas que achávamos ser diferentes de nós são, na verdade, muito parecidas.

Agradeço a cada um que me recebeu e me recebe sem dar ouvidos aos clichês.

Aos que dão ouvidos, muito obrigada pela oportunidade de quebrar paradigmas.

 

Rachel Jaccoud Ribeiro Amaro

 

Trilha sonora deste post:

Ninguém = Ninguém – Engenheiros do Hawaii

 

 

Rachel Jaccoud Amaro

Rachel é historiadora por formação, escritora por vocação e fotógrafa nas horas vagas. Ama quebrar paradigmas e, exatamente por isso, abraçou o Olha Bem pq Bem Tem como projeto de vida.

6 thoughts on “Que caiam os clichês!

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