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Por uma vida que a gente goste de viver (parte 2)

Quando 2020 começou, escrevi um texto com o titulo “Por uma vida que a gente goste de viver”. Naquela ocasião, (e ainda hoje), eu estava certa de que a vida não precisava ser chata, bastando um pouquinho de coragem para mudar e virar o jogo. Perdoem-me se pareço ingênua, mas conformar-me com uma situação da qual não gosto, nunca foi uma opção para mim.

Assim, meu desejo para 2020 era um bastante específico (pelo menos o que eu julgava ser o mais altruísta): inspirar as pessoas a viverem uma vida que elas gostariam de viver.  Sim, simples assim. Mas aí veio a pandemia e ficamos presos. E muitas vezes o racional sobressaiu-se à emoção, e muitas vezes a emoção sobressaiu-se às ações. Como os planos de todos, os meus pareciam ter ido por água abaixo, ainda que eu não tivesse desistido.

Com algumas adaptações aqui e ali, com alguns percalços e muitas bênçãos, 2020 foi um ano maravilhoso para mim. E provou que eu estava certa. Era, sim, possível viver uma vida que fosse gostosa de viver, mesmo em plena pandemia, mesmo com planos arruinados. Eu, porém, estava longe de provar isso para outras pessoas. E não adiantava ter essa benção guardada para mim. Eu queria inspirar.

Eu achava que ia inspirar as pessoas através da escrita. No entanto, havia tanto trabalho a ser feito (no campo e na internet) que não sobrava muito tempo nem energia para escrever. Além disso, como escrever sobre uma realidade tão diferente da maioria das pessoas e ainda assim demonstrar empatia?

Eu não fazia a menor ideia…

Mais uma vez, Bacharach…

Não havíamos ainda chegado à Quinta do Vilar quando recebemos o convite de Melanie Maria Kneip para colher uvas em Bacharach, no sul da Alemanha, ainda no ano de 2020. Desta vez o trabalho seria pago, e não voluntário. Por isso, apesar do cronograma apertado, decidimos aceitar o convite e seguir novamente para a Alemanha, logo após a colheita em Portugal.

Havíamos estado em Bacharach em 2017, em nossa primeira viagem como Workawayers. A experiência não fora nada do que esperávamos. Colheita frustrada, vida de baby-sitter, trabalho duro e novas amizades marcaram nossa primeira estadia. Mas desde então havíamos mantido contato com a Melanie, dona da vinícola, e entendemos que aquela oportunidade era uma forma de fechar bem o ciclo que começara há 3 anos.

O clima em Bacharach não poderia ser mais diferente do que na Quinta do Vilar, em todos os sentidos. Em vez de Javalis, tínhamos Bambis completando a paisagem. Ao invés das videiras em platôs, tínhamos um solo muito íngreme para explorar. Em vez de um grupo de amigos, éramos um grupo de ilustres desconhecidos, pelo menos a princípio. E, em vez de uma vinicultora cheia de princípios e paixão por um mundo melhor, tínhamos uma vinicultora descompromissada com o meio ambiente e completamente desinteressada por aqueles que ela havia contratado.

Melanie… Ela bem que tentava enganar, fingir que se importava, ao oferecer-nos degustações e mimos. Mas quem está acostumado a uma conversa sincera e a compartilhar histórias e risadas, podia perceber que ela só estava mesmo interessada em manter as aparências.

Encontro real, além do virtual

Por sorte, diferente dela, o grupo que nos cercava parecia ser bastante interessante: além dos brasileiros empreendedores e nômades, havia um jovem italiano estudante de enologia, uma sommelier italiana em busca de melhor posicionamento profissional, uma guia de turismo catalã cheia de sonhos, que vivia há anos na Inglaterra e estava tentando se virar em meio à pandemia, dois trabalhadores agrícolas sicilianos, e dois voluntários: um jovem mexicano bastante suspeito e uma adorável e pró-ativa estudante alemã. Estávamos prestes a trabalhar juntos por muitos dias. E quantas experiências poderíamos trocar!

O clima era de novidade quando começamos os trabalhos nas vinhas em uma fria segunda-feira. Cada trabalhador ficava responsável por uma fileira e esperava-se que todos chegassem ao final das linhas mais ou menos juntos, para então subirmos novamente ao topo. As linhas eram estreitas e isso colocava-nos muito próximos uns dos outros. Portanto, enquanto colhíamos uvas, íamos nos conhecendo, descobrindo experiências, desvendando sonhos e anseios. A comunicação acontecia quase sempre em inglês. Mas em um grupo tão heterogêneo,  era de se esperar que também se ouvisse molto italiano, un poco de español y catalán, ein bisschen deutsch e um pouquinho de português brasileiro, claro!

Logo descobrimos que Luiz Felipe e a catalã inglesa eram como irmãos separados na maternidade. Eles elevavam qualquer astral, eram solícitos e conversavam e ajudavam a todos, cantavam o tempo todo! Bella Ciao transformou-se no hino oficial de nossa colheita. Todas as manhãs eles começavam: Una Matina… lalalalala… Bella Ciao Bella Ciao… E todos iam atrás no improviso.

Inspiramos com nossa própria vida, não com textos

Os dias foram passando, o cansaço pelo trabalho árduo e horas extras debaixo de sol e chuva foram alterando os ânimos e surgiram algumas alfinetadas e caras feias. A alegria do brasileiro e da catalã às vezes irritava profundamente os que estavam em volta. Meu corpo doía em lugares que eu nem sabia que existiam mesmo após anos de Pilates e mesmo após as colheitas na Quinta do Vilar. Mas quando lembro daqueles dias, não são as dores que sinto. Sinto que estava concretizando mais um sonho.

Sim, era um sonho colher uvas em Bacharach. Mas o trabalho é tão árduo que, posso dizer com segurança, em alguns momentos bateu um arrependimento. (É bem mais gostoso colher uvas em Portugal 😅😇). Então não é desse sonho que estou falando, mas daquele outro, de inspirar pessoas a viverem a vida como elas gostariam de viver.

Gentileza gera Gentileza

Ali, naquele dia a dia tão difícil, dolorido, chuvoso, cheio de espinhos, trabalhamos duro sem reclamar. Quando a energia acabava, ainda tínhamos um pouco mais para dar, sempre com um sorriso no rosto. Quando a fome batia, cozinhávamos para todos com alegria. Como casal, mostrávamos que para nós o melhor da vida era ter a companhia um do outro, mostrávamos que dois era melhor que um. Gentileza gera gentileza.

Quando procuravam saber sobre a louca vida de nômades, ou a louca vida de brasileiros, ou a louca vida de autônomos, respondíamos com o coração, com verdade, com a humildade aprendida nos dias de derrota, com o orgulho de quem tentou e continua tentando.

Ao final daqueles dias, tivemos o privilégio de ouvir de uma (agora) amiga catalã, que ela gostaria que tivéssemos sido para ela os pais que ela nunca teve (nunca recebi um elogio maior que esse!). Da doce menina alemã, ouvimos um “Vielen Dank” por mostrar a ela que a vida poderia ser diferente daquela rotina chata que muitas vezes a sociedade nos impõe. Do jovem enólogo, ouvimos “Thank you” por tantos ensinamentos e que ele ficaria muito feliz se um dia pudesse nos ajudar a produzir nosso próprio vinho. Da orgulhosa sommelier, ouvimos o quanto ela ficou feliz em nos conhecer. Dos sicilianos que não falavam inglês, ouvimos “Grazie Mille” por tentar entendê-los, muito obrigado por incluí-los, muito obrigado por ajudar no trabalho duro sempre com solicitude. Gentileza gera Gentileza.

De Melanie Maria Kneip, recebemos uma oferta de emprego que depois converteu-se em exploração. Mas essa é uma outra história… de 2021.

Sim, estava claro que havíamos inspirado algumas pessoas. Missão Cumprida pelo menos por aquele mês. Agora, era hora de voltar…

Trilha Sonora deste post: La casa de papel – Bella Ciao

Rachel Jaccoud Amaro

Rachel é historiadora por formação, escritora por vocação e fotógrafa nas horas vagas. Ama quebrar paradigmas e, exatamente por isso, abraçou o Olha Bem pq Bem Tem como projeto de vida.

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