Brasil

Luiz Gama e Princesa Isabel

(OU Uma reflexão sobre os 131 anos da Abolição da Escravatura)

13 de maio de 2019. Há 131 anos a Princesa Isabel assinava a Lei Áurea e libertava todos os escravos que ainda existiam no Brasil. Essa História todos conhecem: foi um processo longo. A Lei Áurea foi a última de uma série de leis que previam a abolição da escravatura no Brasil de forma gradual. A primeira foi a Lei Eusébio de Queirós de 1850 que proibiu o tráfico internacional de escravos. Depois veio a Lei do Ventre Livre de 1871, que libertava todos os filhos de escravos nascidos a partir daquela data. Em 1885 veio a Lei dos Sexagenários, que libertou os poucos escravos que conseguiam chegar aos 60 anos. Por fim, a polêmica Lei Áurea.

Hoje, sobram críticas à data, à Princesa Isabel e à forma como a libertação foi conduzida, sem sequer prever e promover o ingresso de ex-escravos na sociedade da época. Há quem diga que aquele foi o início de grande parte dos nossos males. Há quem queira celebrar outros nomes da luta negra, muito importantes para a abolição e para a nossa História.

Eu, por outro lado, acredito que a História não é preta e branca. Ela é muito colorida e repleta de nuanças em todos os tons. Por isso, em homenagem ao dia de hoje, resolvi reunir em um mesmo artigo dois personagens importantes desta parte de nossa História. De um lado, o advogado e escritor negro Luiz Gama; de outro, a princesa, “redentora” branca Isabel. Porque, afinal, entender a participação de ambos no processo de libertação dos escravos é fundamental para refletirmos sobre o país que queremos construir para nós.

Luiz Gama

Poucas pessoas, mas felizmente cada vez mais, conhecem Luiz Gonzaga Pinto da Gama – o apóstolo negro da Abolição. Ele foi um escritor, orador, jornalista e advogado brasileiro, responsável pela libertação de mais de 500 escravos e dono de uma história de vida inspiradora.

Nascido em 1830, em Salvador, Gama era filho de uma africana liberta com um fidalgo português. Portanto, nascera livre. Mas, por ser negro, aos 10 anos de idade acabou sendo vendido como escravo pelo próprio pai que, já tendo esgotado uma herança recebida em 1838, vivia na miséria.

Depois de ter passado pelo Rio de Janeiro, foi para São Paulo pelas mãos do contrabandista Antônio Pereira Cardoso. Lá ele seria novamente posto a venda, mas ele não foi comprado. Os escravos vindos da Bahia eram tidos como “desordeiros” e “revolucionários”, porque recentemente, em 1835, havia acontecido a Revolta dos Malês em Salvador, da qual, inclusive, a mãe de Gama, Luiza Mahin, teria participado.

Por isso, Gama acabou permanecendo na casa do senhor Cardoso. Ali foi encarregado dos serviços domésticos, chegou a aprender o ofício de sapateiro com outro escravo e, aos dezessete anos de idade, foi alfabetizado por um hóspede que viera de Campinas para a capital com o objetivo de estudar. E então, tal como na trajetória do seringueiro Chico Mendes, o contato com as Letras fez toda a diferença na vida de Luiz Gama!

De escravo a advogado

Em 1848, Gama fugiu e finalmente conseguiu comprovar sua liberdade! Até chegou a assistir algumas aulas na Faculdade de Direito de São Paulo mas era essencialmente um autodidata. Mesmo sem diploma de bacharel em Direito, tornou-se um rábula, ou seja, um advogado que, não possuindo formação acadêmica, obtinha a autorização do órgão competente do Poder Judiciário para exercer a profissão em primeira instância.

Assim, pela via judicial e com grande eloquência, Luiz Gama adotou a causa abolicionista e chegou a libertar mais de 500 escravos, um feito único na história da advocacia. E mesmo quando perdia uma causa, comprava a alforria com dinheiro arrecadado por ele mesmo, às vezes com a ajuda da Maçonaria e do Círculo Operário Italiano. O prestígio de Gama ultrapassou as fronteiras de São Paulo. Escravos de outras províncias o procuravam e ele chegou a ser chamado de “O terror dos fazendeiros”.

Luiz Gama, entretanto, não pode assistir ao fim da escravidão. Ele morreu de diabetes em 1882, aos 52 anos. O escritor Raul Pompeia registrou cada momento de seu ato fúnebre e descreveu os soluços e lágrimas daqueles que acompanharam o momento. Celebrado e amado por muitos em sua época, a luta de Gama ficou esquecida dos livros de História nos anos subsequentes, sendo resgatada apenas recentemente.

Há muito mais a ser dito sobre Luiz Gama! Para saber mais, acesse aqui, aqui e aqui.

Princesa Isabel

De fato, as páginas dos livros de História privilegiaram a Princesa Isabel em detrimento de muitos negros que lutaram pela libertação dos seus ao longo de muitos séculos. Eu mesma não lembro de ter ouvido falar de Luiz Gama nos meus anos escolares. Felizmente, recentemente muitos historiadores têm tentado recuperar a história da luta negra pela liberdade. Isso não significa, entretanto, que a Princesa Isabel não tenha o seu lugar e não mereça ser lembrada.

Nascida em 1846, Isabel passou a ser a herdeira presuntiva do imperador D. Pedro II a partir de 1850, após a morte prematura de seus dois irmãos. Apesar disso, D. Pedro II não criara suas filhas para assumir o trono. Segundo o historiador José Murilo de Carvalho, o imperador nunca acreditou que de fato uma mulher poderia governar, nem que a monarquia duraria muito tempo no Brasil (discretamente, D. Pedro II era ele mesmo um entusiasta da República, mas este é assunto para outro artigo).

Dessa forma, Isabel teve uma edução cuidadosa, privilegiada, digna de uma princesa, mas também muito voltada para afazeres domésticos e para as virtudes que eram esperadas de uma mulher nobre na época. Sua educação não foi direcionada para transformá-la em uma estadista. Apesar disso, Isabel chegou a ser a Regente do Brasil em três momentos diferentes, durante algumas viagens de seu pai. Na última dessas ocasiões, ela assinou a Lei Áurea e apenas por este fato ficou amplamente conhecida.

De princesa à Redentora

Na ocasião da assinatura da Lei Áurea, a Princesa Isabel foi muito aclamada nas ruas. E chegou a ganhar do jornalista e abolicionista negro José do Patrocínio (1853-1905) o título de “A Redentora”. Seus críticos dizem, entretanto, que quando a Lei Áurea foi assinada a abolição já estava feita nas ruas, revolucionariamente. Dizem também que a Princesa nada fez para que os negros pudessem ser inseridos na sociedade. Dizem ainda que à figura de progressista e abolicionista sobrepunha-se uma mulher recatada, dedicada à família e à religião. Pois é… Mas nada é tão simples assim…

Sim, a pressão popular já era imensa. Mas alguém precisava assinar a abolição definitiva, não precisava? Sim, não foi pensada uma forma de inserção dos negros na sociedade. Mas ela teve que lutar muito para enfrentar boa parte dos fazendeiros donos de escravos que faziam parte do governo, não queriam essa inserção e ainda exigiam uma indenização por “perda de propriedade” – já que era assim como eles viam os escravos na época. Sim, ela era recatada. Mas foi assim que ela foi criada.

Olhando daqui pra trás, eu vejo a Princesa Isabel como alguém que teve muita coragem para fazer o que fez. Arriscou seus próprios privilégios, perdeu muito deles e não se arrependeu! Ao partir para o exílio, ela chegou a dizer: “Se mil outros tronos eu tivesse, mil tronos eu perderia para por fim à escravidão!” E quantos de nós faríamos o mesmo?

Isabel viu seu país livre da escravidão. Mas, diferentemente de Luiz Gama, quando morreu ela estava longe, no exílio, sem receber as homenagens e as lágrimas que seu compatriota abolicionista recebeu.

Para saber mais, leia o livro D. Pedro II, de José Murilo de Carvalho.

Um longo caminho pela frente

A Lei Áurea pôs um fim formal à escravidão. Mas os dados ainda hoje são alarmantes! Na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua divulgada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) no final de 2018, percebe-se que o número de negros assassinados no Brasil é 2,5 vezes maior que o de brancos. O analfabetismo entre negros é duas vezes maior do que entre brancos. E negros são 78% entre os mais pobres e somente 25% entre os mais ricos.

Nós, brasileiros brancos, pardos e negros, ainda temos um longo caminho pela frente. Precisamos de mais acertos para nos tornarmos um país mais justo, menos desigual. Para isso, deveríamos dar as mãos, unir forças. Precisamos de outros Luizes, outras Isabéis, outras Marielles, outros Chicos. Só assim as mudanças que queremos poderão de fato ser implementadas.

O objetivo deste artigo não foi esgotar a vida dessas duas personagens importantes de nossa História. Mas apenas trazer à reflexão que a trajetória de nosso país é definida por diferentes atores com diferentes papéis, todos muito importantes.

Luiz Gama e Isabel lutaram com as armas que tinham disponíveis, cada um à sua maneira. E você? Qual é a sua forma de lutar? Vamos lá! Lutar é preciso para construirmos um Brasil em que tenhamos vontade e orgulho de viver.

Rachel Jaccoud Amaro Mendonça

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Rachel Jaccoud Amaro

Rachel é historiadora por formação, escritora por vocação e fotógrafa nas horas vagas. Ama quebrar paradigmas e, exatamente por isso, abraçou o Olha Bem pq Bem Tem como projeto de vida.

7 thoughts on “Luiz Gama e Princesa Isabel

  • WILLIAM MORAES CORRÊA

    O Brasil não merece os brasileiros. Excelente artigo.

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  • Impressionada com seu artigo, desconhecia Luiz Gama, gostei de ler sobre ele.

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    • Oi, Célia! Que bom que você gostou. Realmente pouco se falava de Luiz Gama. Mas acredito que agora cada vez mais ouviremos sobre ele! Muito obrigada por seu comentário. =)

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  • texto muito bom, acho importante um entendimento de que uma coisa não anula outra. Sobre a família real não ter feito nenhuma política pós abolicionista, não foi bem assim, essa política existia e estava em curso, inclusive uma reforma agrária incluindo negros e uma indenização “aos escravos” que gerou furor quando antigos senhores contestaram alegando que eles é que mereciam indenização, o impasse acabou com outro abolicionista (bem controverso nessa ação) que era oposição a coroa e um dos raros abolicionistas republicanos que foi rui Barbosa (há quem questione se era mesmo abolicionista ou somente um articulador), ele queimou todos os documentos de posse alegando que assim acabaria a briga e ninguém precisaria indenizar ninguém (a corou deixou estabelecido que os indenizados seriam os escravos), foi por essas e outras que houve o golpe da república, o objetivo era frear essas iniciativas, antes mesmo de Dom Pedro sair do Brasil e deixar a responsabilidade com Isabel (outra questão controversa, pois Dom Pedro confiava de fato nela e a instruiu para ocupar cargos maiores) já havia um consenso com abolicionistas do Sul como Ildefonso Pereira Correia, ao qual ele deu o titulo de Barão do Cerro azul para ter mais autonomia na província de Curitiba caso a família real fosse deposta (eles já temiam isso caso abolissem, ainda assim persistiram), antes da abolição dom Pedro negociou com Ildefonso a construção da ferrovia Curitiba Paranaguá que deveria ser executada pelo projeto dos irmão Rebolças, que eram negros apadrinhados da coroa que investiu neles para quebrar paradigmas (Dom Pedro já tinha, naquela época, noção de lugar de fala) ele queria que os Rebolças fizessem a rodovia de Petrópolis mas teve forte oposição no Rio, quando Idelfonso pediu para o paraná começou essa negociação que incluía um processo de reforma agrária, Dom Pedro demorou para abolir e fez o processo gradual porque esteve envolvido com os abolicionistas dos EUA que aconteceu logo que aqui acabou a guerra do Paraguai que foi um desgaste para a coroa, ele temia que se fizesse na época ocorresse aqui uma guerra civil pior que a revolução confederada e tudo fosse posto a perder, ainda assim tivemos a guerra do contestado num molde similar a guerra confederada dos EUA, os contestados, quando chegaram no paraná, levaram todos os principais abolicionistas (incluindo o Barão) para serem ironicamente executados na ferrovia dos irmão negros, enfim, essa história é complexa, mas a família real lutou pela abolição desde o primeiro dia de posse de dom Pedro, quando ainda tinha 14 anos, sempre foi contra a escravidão, considerava hediondo.

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