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Conto dos portugueses

Eu bem que avisei: – Felipe, não entre nessa rua!

Ele só queria encontrar uma vaga para estacionar o carro. Otimista como é, tinha plena convicção de que encontraria uma bem próxima ao hotel.

Ruas estreitas. Cidade medieval. Não convém entrar em Óbidos com um objeto motorizado do século XX. Afinal, não combina. Não dá match. Eu avisei!

Avisar, porém, é o pior que se pode fazer quando se trata do meu marido. Apodera-se dele uma teimosia, uma vontade de contrariar que não se encontra em gibi. Então lá foi ele! Ele entrou na rua sem saída. Ladeira acima. À procura de um lugar para estacionar.

Ora pois. Não encontrou. E dali não saiu. Não havia espaço para manobrar. O que havia era uma vala. Não adiantava acelerar.

Pronto. Estava empacado.

Empacados com companhia

Não demorou muito… Não demorou nada para aparecer alguém no sobrado e dizer: – Vire mais pra lá! Jogue mais pra cá…

Aquela senhora não parecia saber dirigir, tal como eu. Mas, diferente de mim, opinava com propriedade. Eu dizia: Felipe, a moça ali diz que você deve virar mais pra lá. Agora ela diz que você deve jogar mais pra cá… Nada mudava.

Do lado de fora do carro, minha mãe tentava ajudar. Do lado de dentro, pelo menos de minha parte, os ânimos não iam bem. Resolvi sair.

A moça… (Opa, não posso chamar de moça. Moça aqui em Portugal é pejorativo. Devo chamar de menina). A menina no sobrado (que estava mais pra senhora) puxa conversa. Começa com um “Deus abençoe vocês, menina”. E começa a contar a vida…

No volante, meu marido sabia o que fazer mas não tinha muito sucesso. Do lado de fora, minha mãe analisa a situação, tenta aconselhar e manter a calma, enquanto eu bato papo com a moça do sobrado. De repente, ouvimos as sirenes de um carro de polícia! Pensei: lascou-se! Chamaram a polícia porque entramos na rua errada!

Não… Não era com a gente… Na rua de cima, iniciou-se uma discussão sobre estacionar em local inapropriado. Um português havia sido multado e indignava-se com isso.

Os policiais eram dois – um homem e uma mulher. A moça do sobrado… Ou melhor, a menina-senhora do sobrado achou uma boa ideia gritar para os policiais: “Oi! Ajuda! Os senhores aqui ficaram presos!”

Admira-me a solicitude dos portugueses

Na rua de cima, os portugueses que haviam sido multados discutiam com um dos policiais. A policial, entretanto, desceu para nos ajudar.

Mas o que há de acontecer aqui?

Explicamos. Ela analisa a situação e conclui: a roda não tem aderência. “Não sei como os senhores haverão de sair daí”. Solícita, ainda assim ela tenta ajudar. Joga pra lá, joga pra cá… “Vou chamar meu colega. – ela diz”.

A menina-senhora continua a observar da janela. Passa outro português pelo caminho e também dá seu pitaco: – Deves jogar mais para aquele canto e depois subir aqui.

Na rua ao lado, gritos elevam-se. O senhor multado comete um desacato ao dizer para a policial que há pouco tentava nos ajudar: – “Você sabe com quem está falando!”

A policial coloca a mão na cintura e diz: – ” Ora pois… Apresente-se o senhor! Com quem pensas que estas a falar. Coloque-se no seu lugar!”

Vergonha alheia. Vergonha sincera. Uma das rodas de nosso carro estava literalmente no ar. Respirei o cheiro de embreagem queimada e disse: “Marido, saia do carro e analise você mesmo a situação. Vai ajudá-lo a resolver o problema”.

É preciso manter a calma para que as ideias surjam

Minha mãe teve então uma ideia. No canteiro ao lado, havia entulho. E se preenchêssemos a vala para eliminá-la e dar aderência a roda que estava no ar? Pega pedra, arrasta pedra. Voltam os dois policiais. Dá-se mais pitacos. Vire para cá, vire pra lá. Ora, pois… – o marido dizia – já fiz isso!

O carro, por fim, saiu da vala. Manter a calma foi o mais importante. A menina-senhora do sobrado aplaudiu. A essa altura já havia me contado de sua solidão, de sua viuvez, da morte de sua mãe, e de como desejava que eu fosse feliz ao lado de meu heroico esposo.

Os policiais despediram-se após terem enquadrado o senhor que os havia desacatado. O português que passou à paisana, misteriosamente desapareceu. A menina-senhora do sobrado dava-me adeus da sacada… “Deus lhes guarde, menina. Sejam felizes”.

Naquela rua não voltaremos mais, pelo menos de carro. Mas ficou a lição… Nada como um trabalho em grupo… E nada como a solicitude dos portugueses. Nada como ver um problema de fora da situação e manter a calma.

Rachel Jaccoud Amaro Mendonça

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Rachel Jaccoud Amaro

Rachel é historiadora por formação, escritora por vocação e fotógrafa nas horas vagas. Ama quebrar paradigmas e, exatamente por isso, abraçou o Olha Bem pq Bem Tem como projeto de vida.

2 thoughts on “Conto dos portugueses

  • Luana Ribeiro

    Gente, me desculpa, mas posso rir?! Que situação!!! Lendo o texto só consigo imaginar a cena, o seu (mau) humor e rir! E para completar a cena hilária: a senhorinha, a briga, os guardas. Imagino que deve ter sido um momento mega estressante, eu também ficaria irritadíssima – principalmente quando prevejo e aviso que não será bom – , mas também podemos pensar: isso é história para contar! Qual viagem não tem perrengues? É vida real! Momentos assim testam a nossa paciência e também a inteligência emocional, mas no final o que importa é o aprendizado que fica e as risadas todas vez que lembrar! E como costumo dizer: problemas são experiências que fazem parte da vida. Devem ser visto de todos os ângulos para que possamos ampliar as possibilidades de resolução. Mas é claro que se estivermos imersos em sentimentos de ruins teremos mais dificuldades para resolver. Por isso, diante de ocasiões como essa, vale tentar o famoso: respire e siga!

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    • Sim! É pra rir mesmo! Na hora em que vivemos foi muito tenso… Mas depois é sempre uma delícia lembrar dessas histórias que tanto nos ensinam. Muito obrigada por deixar seu comentário! <3

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