Comportamento

As Videiras

A primeira coisa que percebi foi quão fortes elas eram. A uva é uma das frutas mais sensíveis que conhecemos. Sua suculência é coberta por uma fina película, brilhante e frágil como um balão de ar. Não à toa, ao comprarmos cachos de uvas no supermercado, elas são sempre as últimas a entrarem na sacola e as primeiras a serem retiradas. Afinal, não queremos que elas percam seu suco, seu aroma, seu valor. Não é assim?

Essa era a perspectiva de uma menina da cidade grande. Essa era a ideia que eu tinha quando comecei a colher uvas pela primeira vez. “Todo cuidado é pouco”, pensava. Com o passar das horas e dos dias, entretanto, percebi que não poderia estar mais enganada. As videiras e suas uvas são incrivelmente fortes, resistentes, resilientes.

Escondidas em meio às folhas das videiras, as uvas persistiam bravamente ao toque insensível de minha luva e ao corte da tesoura. Às vezes, colhíamos do chão, onde os cachos jaziam em meio ao mato e aos mais diferentes insetos. Não importava a força das chuvas, nem o secar do sol, os dias passavam e lá estavam elas: inteiras, doces e suculentas.

Mas aquele momento, o colher dos frutos, era apenas o final de um ciclo inteiro de provações, de um mexe e remexe sem fim em seus galhos. E hoje, ao olhar para trás, sorrio de minha surpresa, inocência e ignorância naquelas dias. Eu não sabia nada sobre a força das videiras, e ainda não sei.

As videiras são milenares.

Conta-nos a Bíblia que Noé foi o primeiro a plantar uma vinha (Gênesis 9:20) e também o primeiro a criar e se embebedar com o seu próprio vinho. E, para os gregos, o vinho nada mais era do que um presente dos deuses. Do ponto de vista histórico, há indícios de que o vinho exista há mais de 7.000 anos, e sua origem mais provável é no Oriente Médio, na região onde hoje se localizam Síria, Líbano e Jordânia. Mas uma origem precisa é impossível, pois o vinho nasceu muito antes da escrita, e, segundo dizem os enólogos, por simples acaso, talvez por um punhado de uvas amassadas esquecidas num recipiente, que sofreram posteriormente os efeitos da fermentação.

Fato é que desde que os homens deixaram de ser nômades, o cultivo das videiras passou a fazer parte de seus dias. E, talvez seja exatamente por isso que as videiras sejam incansavelmente mencionadas na Bíblia, especialmente por profetas e por Jesus, sempre como forma de aproximar discursos mais complexos do dia a dia de seus ouvintes. As videiras, sua força, seu valor e o cuidado que demandavam em todas as estações do ano faziam parte do cotidiano de todos.

Para quem ouvia essas histórias muitos séculos depois, sentada em um banco da igreja, todo aquele papo sobre vide, vinho, vida e videira verdadeira não fazia muito sentido. De fato, para entender belos trechos como o de João 15:1-7 era-me necessária uma capacidade de abstração maior do que entender as leis de movimento da Física.

Tudo isso mudou ao colher uvas, ao podar videiras, ao fazer sua desfolha,  enfim, ao participar de todos os seus ciclos. Videiras demandam muito cuidado. Mas ah… como elas são fortes.

O ciclo das videiras

No inverno, após terem nos dado muitos frutos, elas perdem completamente suas folhas e resumem-se a um punhado de ramos, galhos secos que nem parecem ter vida. É nesse momento que devemos podá-las. Para tanto, dentre muitos ramos, escolhemos apenas um que permanecerá para o próximo ano. É deste único ramo que nascerão todos os demais e seus respectivos frutos. Os outros galhos secos do ano anterior são jogados fora. O ramo escolhido deve então ser curvado e preso de uma forma que consiga espaço para crescer. Sim, quando forçamos, às vezes eles quebram. Mas basta que ele se mantenha em contato com seu tronco, a videira verdadeira, para que se regenere, floresça e dê frutos. Surgem as primeiras folhas e também as primeiras flores. Suas flores são pequenas e em formato de cacho. Parece que vão se desmanchar ao primeiro sopro do vento. Mas é delas que surgem os cachos de uva, primeiramente verdes vivos, firmes, rígidos. Depois macios, translúcidos e flexíveis.

Participar de todo esse processo fez-me aproximar ainda mais de Deus. As palavras não são capazes de descrever meu deslumbramento ao presenciar que as videiras sobrevivem mesmo quando falhamos, caímos, e quebramos os galhos que não deveríamos quebrar. Elas resistem.

Há algo de maravilhoso em estar sozinho em meio às videiras, com a companhia apenas do canto dos pássaros, de plantas e espinhos que delas se acercam e dos buracos cavados por lebres na Alemanha e por Javalis em Portugal. Se fizermos bastante silêncio, é possível até mesmo ouvir os galhos se abrindo para novas folhas. É possível ouvir o agir e mover de Deus na natureza e em nós, como parte de sua criação.

Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultor. Todo ramo que, estando em mim, não dá fruto, ele corta; e todo que dá fruto ele poda, para que dê mais fruto ainda. Vocês já estão limpos, pela palavra que tenho falado. Permaneçam em mim, e eu permanecerei em vocês. Nenhum ramo pode dar fruto por si mesmo se não permanecer na videira. Vocês também não podem dar fruto se não permanecerem em mim. “Eu sou a videira; vocês são os ramos. Se alguém permanecer em mim e eu nele, esse dará muito fruto; pois sem mim vocês não podem fazer coisa alguma. Se alguém não permanecer em mim, será como o ramo que é jogado fora e seca. Tais ramos são apanhados, lançados ao fogo e queimados. Se vocês permanecerem em mim, e as minhas palavras permanecerem em vocês, pedirão o que quiserem, e será concedido.

João 15:1‭-‬7 NVI

P.S. Nossa relação com vinho, videiras e vinícolas vem de longa data, mas apenas recentemente tivemos a oportunidade de realmente aprender mais e na prática sobre o tema. Outros textos ainda virão. Mas para acompanhar essa trajetória do início, siga a lista dos posts abaixo:

E aí… Virei babysitter!
Quando “quebrar” nos “conserta”
Nos bastidores de uma celebração
A Quinta do Vilar (parte 2)

Rachel Jaccoud Amaro

Rachel é historiadora por formação, escritora por vocação e fotógrafa nas horas vagas. Ama quebrar paradigmas e, exatamente por isso, abraçou o Olha Bem pq Bem Tem como projeto de vida.

5 thoughts on “As Videiras

  • Mais um texto belo, profundo e surpreendente. Obrigado pelo momento de intensa reflexão e de mergulho na beleza que você me proporcionou.

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  • Eliete Jaccoud Ribeiro Amaro

    Lindo texto. Obrigada por compartilhar suas experiências que nos trazem tanta reflexão.

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