ArteComportamento

Arte engajada

#olhabempqbemtem …na arte engajada, na arte de protesto, em expressões artísticas públicas.

Era apenas mais um dia de sol no Rio de Janeiro. Eu aproveitara o bom tempo para ir ao centro da cidade e resolver uma série de assuntos e reunir material para um de meus projetos – o Rio de Janeiro by Cariocas.

Peguei o metrô e desci na estação Cinelândia, um daqueles lugares que conheço de cor, por onde passei muitas e muitas vezes em busca de encontros e desencontros, almoços e lanches da tarde, peças teatrais, conhecimento e pesquisa. Um lugar para mim repleto de riqueza e surpresas. A surpresa do dia, eu pensara, era um baterista que havia montado seu instrumento e tocava bem ali em meio a praça de forma mais desordenada que bela. Mesmo assim, fez-me sorrir. Artistas de rua no Rio de Janeiro são muitos nos últimos anos, mas baterista solo era o primeiro que eu via.

Fotografei. Click. Na verdade, queria fotografar todo o local. Era o meu principal objetivo ao ir ali. Mas as árvores fartas cobriam boa parte da paisagem. Além disso, medo. Eu tinha medo de ser furtada, assaltada, enganada, surpreendida pelas circunstâncias. Infelizmente, isso faz parte da rotina quando se vive no Rio de Janeiro.

Enquanto eu andava até o teatro, do teatro para o museu, do museu para a biblioteca, da biblioteca para o centro cultural e do centro cultural para o cinema, tímidas fotografias saíam em meio a olhares furtivos e mais atentos às pessoas que aos edifícios.

Após uma volta completa na praça, estava eu novamente em seu centro. O baterista ainda estava ali mas algo tinha mudado. Agora, em sua frente tinha uma cela, uma jaula, um quadrado de grades com alguns dizeres. Aproximei-me. O que era mesmo que estava escrito?

A cela continua vazia. Quem mandou matar Marielle e Anderson?

Foi o que eu li. Engoli em seco. Afinal, eu mesma faço essa pergunta com mais frequência do que gostaria… E antes que eu me desse conta de meus próprios pensamentos, mulheres aqui, ali, acolá gritaram. O grito era sofrido. Desesperador. Seus corpos tremiam. O sofrimento reverberava a todos os membros. Elas paravam. Caminhavam. Em seguida, gritavam novamente.

O medo passou. Eu queria gritar com elas, sofrer com elas, abraçar aquelas mulheres que, como eu, queriam uma resposta. Ao invés disso, filmei o momento junto a outras pessoas. Mas tremia e chorava. Foi muito forte.

O medo esvaiu-se. A praça agora era um grande teatro da vida real e todos respeitariam o espetáculo. Uma pausa para a arte engajada. Uma pausa para emoções e reflexões. 

Como se lessem meus pensamentos, próximas do fim de sua cena, as mulheres se abraçaram. Era um abraço amigo, consolador, daquele que diz: “você não está sozinha”. 

A cena terminou com as mulheres em círculo, de mãos dadas. Ao fim da encenação não houve aplausos. Apenas o silêncio. Afinal, ninguém mais ouvia o baterista descoordenado. As atrizes sorriram, descontraíram, dançaram levemente. Missão cumprida. Dever cumprido. E o semblante de quem ama o que faz. Parecia que eu as ouvia dizer: “Está tudo horrível por aqui. É verdade, mas a vida continua. E faremos o nosso melhor com ela”.

Eu queria ter ido até elas. Queria perguntar o nome do grupo. Parabenizá-las e dizer que eu gostaria de divulgar aquele trabalho. Mas não deu. Escolhi prolongar os efeitos daquele momento no meu corpo, o nó na garganta, as lágrimas no olhar. Palavras não sairiam de qualquer forma. 

Parabéns, meninas!

Foi um lindo espetáculo, uma linda manifestação, um lindo protesto, uma demonstração do quanto a arte engajada pode ser relevante para nossa sociedade.

Pois é, eu filmei a cena. É um mal deste tempo querer preservar e deixar para a posteridade o aqui e o agora que jamais voltarão. Como consequência de um hábito ruim, o vídeo não faz jus nem um pouco ao que foi e ao que eu senti naquele momento.

Que bobagem filmar… Teria sido melhor gritar. Afinal, o meu grito ainda está preso aqui no meu pescoço. Os pelos do meu braço ainda estão arrepiados. As imagens mentais ainda estão vivas. Não dá para esquecer nada mesmo porque a cela ainda está vazia…

Rachel Jaccoud Amaro Mendonça

Rachel Jaccoud Amaro

Rachel é historiadora por formação, escritora por vocação e fotógrafa nas horas vagas. Ama quebrar paradigmas e, exatamente por isso, abraçou o Olha Bem pq Bem Tem como projeto de vida.

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