Museu Nacional (1818-2018)
Dores e perdas
Chorei. Chorei muito. Chorei lágrimas que nem conseguiram sair de dentro de mim. Luto. É o que sinto nesse momento em que uma grande parte da História do Brasil foi destruída.
Como se fosse ontem, lembro de meu inocente sonho aos 10 anos de idade. Eu dizia que se um dia eu ganhasse na loteria, usaria o dinheiro para restaurar o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista. Afinal, era um absurdo um museu daquele porte (de qualquer porte) ter que sobreviver às condições nas quais se encontrava. Essa era minha visão, há mais de 20 anos! Ou seja, a situação já era bastante óbvia até para uma criança amante da História. Mas, de lá pra cá, eu não ganhei na loteria. E ninguém deu a atenção devida ao que talvez fosse o maior patrimônio histórico, antropológico, cultural de nosso país.
Residência da Família Imperial ao longo de toda a sua estadia no Brasil, aquele chão e aquelas paredes guardavam muita História. Acontecimentos importantes como a assinatura da Independência do Brasil foram ali vividos.
O museu foi fundado por D. João VI em 1818 e era a instituição científica mais antiga do país. Ao longo dos seus primeiros anos, foi muito valorizado especialmente por D. Pedro II, que integrou ao museu o seu próprio acervo de egiptologia e de arte etrusca, por exemplo. Tínhamos ali a primeira coleção de múmias egípcias da América Latina, trajes centenários de índios brasileiros (inclusive de tribos que nem existem mais), incontáveis peças de geologia, paleontologia, botânica, zoologia, arqueologia e etnologia. Era um museu único em nosso país e no mundo!
Mas… Bem… tudo isso você já sabe e já deve ter lido em muitas e muitas notícias.
Mas a dor não é igual para todos
O que talvez ainda não tenha sido tão enfatizado é que algumas pessoas estão sofrendo muito mais do que outras diante de toda essa tragédia.
Ontem fui a uma audiência (referente a cancelamento de voo e extravio de bagagens) e juiz e advogados começaram um papo bem furado sobre o museu. Enquanto segurava minha opinião e minhas lágrimas, o juiz levantou os olhos do computador e disse: “Quem deve estar triste é ela!” – e apontou para mim. Ele acabara de ler que eu era Historiadora. Eu balancei a cabeça e ele continuou: “Sim. Porque essas pessoas formadas em História e em Museologia tem uma relação diferente com o trabalho do que nós temos – falou para os advogados. Nossa relação é mais fria. A deles é de amor”.
Exatamente, Sr. Juiz. E é muito difícil mensurar o tamanho do deserto que se abriu. A gente que vive e respira História, o faz por amor. (Não porque queremos ficar ricos). E, quando a gente perde um amor, sofremos. Sofremos muito.
Mas a situação é ainda pior para aqueles que trabalhavam lá, dedicavam suas vidas aquele projeto de 200 anos, tinham suas pesquisas ali… Viam tudo se degradar há anos e, apesar de todos os seus esforços, nada podiam fazer para resolver o problema.
É como uma família que vê sua casa caindo aos pedaços, mas não consegue dinheiro para reformá-la. Tenta empréstimos, pede ajuda a amigos. Mas a situação é muito grave. Aí chega o dia da enchente. Ela entra e leva todo o pouco que ainda tinham.
Para alguns, perder o Museu Nacional foi assim… Como perder uma casa com tudo dentro: sua história, seu passado e o que você acreditava que seria também o seu futuro.
Uma tragédia anunciada que pode ser seguida por outras
Sim, era uma tragédia anunciada. Como sobreviver com a verba que a eles era destinada? Como cuidar de um acervo de milhares de anos quando você não tem dinheiro nem pra comprar papel higiênico? Foram anos de cortes orçamentários. Aliás, como 4 vigilantes poderiam proteger uma área de 13.000 metros quadrados?
Os números são revoltantes! E você também já deve tê-los visto várias vezes por aí. Mas não custa repetir…
É muito triste. Nenhum país europeu deixaria algo assim acontecer. Museus são locais de memória, de identidade, de patrimônio. São super valorizados, recebem verbas, tem os melhores sistemas de segurança. Em nossa última viagem, tivemos a oportunidade de visitar museus em Buenos Aires e em Santiago do Chile, todos também impecáveis, bem cuidados. Aqui no Brasil, entretanto, nenhum ministro foi à festa de 200 anos do Museu, em junho, e o último presidente a botar os pés na instituição foi Juscelino Kubitschek.
O que estamos fazendo com o nosso país?
Quem trabalha e convive com museus sabe: a situação de nosso patrimônio é caótica há anos. Todos sabem que os museus em melhor estado são financiados por Associações de Amigos do Museu – ou seja, não são financiados pelo governo, mas por pessoas como eu e você, que amam um determinado museu e contribuem para o seu financiamento. Esse é o caso, por exemplo, do Museu Imperial em Petrópolis.
Como podemos reverter este quadro? Quais planos de governo dos atuais presidenciáveis apresentam soluções para a educação, a cultura, nossos museus? O NEXO fez um comparativo e aconselho você a dar uma olhada no resultado aqui. Mesmo que ele não seja muito animador, mostra o quanto devemos cobrar de nossos governantes!
Porque se nada fizermos, com este cenário, outras tragédias e perdas virão.
E qual o bem dessa história toda?
Difícil, né? Difícil enxergar algo de bom.
Mas há uma cena muito bonita nessa história toda que está sendo muito pouco divulgada.
Ao contrário do que alguns pensam. Não, não houve negligência dos funcionários. Eles eram os que mais amavam aquele lugar. Eles que estavam ali todos os dias, tentando amenizar o descaso de nossos governos, cuidando e estudando um patrimônio que era de todos nós.
Para eles, o dinheiro era apenas uma consequência. Afinal, foram eles que chegaram a fazer uma vaquinha online para reunir verba que nunca chegou pelas vias tradicionais e de Direito. Foram eles que saíram de casa para trabalhar com seus salários atrasados por diversas vezes. Foram eles que saíram do conforto de suas casas na noite do incêndio e arriscaram suas vidas para tentar recuperar qualquer item dos 20 milhões valorosos que ali estavam. Por amor.
É imensurável o que perdemos. E eu engulo meu choro todas as vezes que penso…
Mas, aos funcionários do Museu Nacional, muito obrigada por terem tentado (e por continuarem tentando). Muito obrigada por não terem desistido. Muito obrigada por terem cuidado de nosso acervo enquanto foi possível. Lamento muito nossa perda, por mim, por vocês, por nossos filhos… Mas, obrigada. Sem vocês a perda já teria acontecido há muito mais tempo.
Que possamos pelo menos aprender com essa tragédia, valorizando mais nossos espaços de História e Pesquisa, e exigindo que nossos governantes façam o mesmo.
Que tenhamos o cuidado de não minimizar a dor do outro.
Que não esqueçamos, como no caso de Marielle Franco, até hoje sem solução.
Nós não esqueceremos.
Rachel Jaccoud Amaro Mendonça
Linda homenagem à dedicação dos funcionários do Museu. Que eles tenham forças para superarem esse momento de tristeza e perdas irreparáveis para se reerguerem outra vez.
Fico feliz por você ter gostado, Cintia. Sabemos o quanto você amava o Museu… Muito obrigada por seu comentário! Rachel
Eu sinto muito, Chel. E mesmo no meio de tanta dor, vc esclarece muito sobre o que acontece com o nosso Brasil. Nossa história. Como sempre, muito clara e objetiva e hoje, como em alguns outros textos, de todo coração.
<3 <3 <3 Muito obrigada, Karina... Pelos sentimentos, pelo elogio, pelo comentário. Rachel
Belíssimo e emocionante texto, trazendo a reflexão sobre o quanto nossos governantes desprezam a Cultura e, ao mesmo tempo, comprova que existem pessoas realmente dedicadas a preservar nossa História, numa sociedade cada vez mais sem Memória e Imediatista.
E que possamos ter no país algum dia, uma preocupação daqueles que estão no poder quanto a importância da Educação e Cultura para o desenvolvimento de uma nação.
Esse é o meu maior desejo, Jader! Muito obrigada por seu comentário! Rachel